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Antropo.Cenas
3 min readDec 11, 2018
Ruina da Igreja do Sagrado Coração de Jesus na cidade de Petrolândia, destruída com a construção da Barragem de Itaparica (imagem do autor)

Por Gaio Matos

A quantidade de rio preso pela barragem é um mar no meio da caatinga, quase não se vê terra na linha do horizonte. A muralha de concreto que segura a potência do São Francisco, fez a água engolir quatro cidades provocando um êxodo de cerca de 70 mil pessoas, a migração de povos indígenas e o desaparecimento de um sem número de bichos, matas e territórios sagrados. A contenção que deforma a força do rio e ilumina parte do sertão é a mesma que escurece no fundo do lago os escombros de velhas memórias.

A destruição de cidades inteiras às margens do São Francisco a cargo de uma mercantilização desenfreada e um processo longo e brutal de colonização erguido por cima de uma das covas mais profundas que história da civilização já produziu é fim de mundo, mais um. A mitologia acerca do tema parece operar pela fragmentação e pela simultaneidade no tempo e no espaço. Em oposição a uma cronologia ocidentalizada pela instrumentalização da vida e dos acontecimentos de forma sucessiva e encarrilhada, a narrativa descentralizada do fim, traz à tona uma ontologia do apocalipse apartada de uma linearidade espaço-temporal.

Nesta direção, uma acumulação e justaposição de acontecimentos sociais, análises e discursos científicos, políticos, mitológicos, ficcionais e filosóficos parecem (des)orientar o passo a passo e a montagem de um grand finale eminente, tecido a partir da fragmentação trágica do fim. Fins que estão acontecendo, já aconteceram ou poderão acontecer, sem aviso prévio, em qualquer tempo e lugar, como uma onipresença letal transitando entre presente, passado e futuro, não necessariamente nesta ordem.

A impotência da espera e o permanente estado de alerta parecem ser a regra onde sinfonia da destruição total é generosa em alcance e jamais esteve tão próxima da sua completude. A quase certeza da ausência de futuro por conta da agressão capitalista ao planeta é latente e marca a agencia da vida com seu ritmo grave e lúgubre. Para Danowski e Viveiros de Castro “esse futuro-que-acabou chegou, assim, novamente — o que sugere que ele talvez nunca tenha cessado de já ter começado.”1.

É bem provável que não haja mais fuga possível para essa grande colcha apocalíptica que parece nos escurecer pouco a pouco numa noite silenciosa e sem fim. Mas como habitar este cobertor planetário tecido a partir de retalhos sombrios? Como viver a beira do abismo?

Talvez a única saída seja, a princípio, para dentro. Num movimento de inflexão, nos dobrarmos num processo de desumanização. Não como regressão evolutiva, mas como inversão da centralidade do ser humano e sua emergência egocêntrica no mundo em detrimento de todo resto para, em seguida, reumanizar-se no outro, se voltar para fora e se espalhar como um composto de vida em cada folha e tons de terra, cada raio de sol.

Assim como os Ameríndios, reconhecer-se como natureza, sem separação e repontencializar a noção de transformação e exercício de uma alteridade antropomórfica com um euoutro possível sem quaisquer mecanismos de destruição nem a pretensão agônica pela busca de redenção ou factível salvação, mas como prática existencial, convivência harmônica e criativa com a diferença e, sobretudo, com o significado e o entendimento do fim, não como ponto de saturação, mas como movimento e mudança de direção.

1 DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Cultura e Barbárie editora, 2014. (p.14)

*Gaio Matos é artista plástico, doutorando em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia (website: www.gaiomatos.org)

**Texto elaborado pelo autor como ensaio sobre Finitudes para o curso Antropologias no/do Antropoceno, ministrado por Thiago Cardoso, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, 2018.

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