Emergência Climática

Antropo.Cenas
5 min readMay 23, 2022

Estamos diante de uma monumental tragédia climática. Quando chamamos ela de climática, estamos reduzindo num termo coisas que têm um desdobramentos que nem conseguimos sequer relacionar. (Ailton Krenak)

Em Manaus, por Thiago Mota Cardoso

O Dossiê Emergência Climática tem como objetivo tratar do tema do aquecimento global por meio do olhar das humanidades. Para tal, convidamos pesquisadores, pensadores e ativistas de diversas áreas (antropologia, filosofia, sociologia, estudos urbanos, literatura, estudos das ciências, ecologia, arte), indígenas e quilombolas, para contribuir com ensaios temáticos, entrevistas e reportagens que abordam a crise climática em múltiplas dimensões, buscando se acercar de seu contexto cosmopolítico, configurações socioambientais, perspectivas culturais e modos de superação.

Fizemos deste tema uma multiplicidade de questões menores. Como contarmos histórias relevantes, críticas e potentes no atual regime climático por e a partir das ciências humanas, sociais e das artes? Que histórias podemos contar para compreender seus devires, enriquecer nosso imaginário e analisar sua constituição, apontando para um pluriverso de possibilidades de existir e resistir num mundo cada vez mais aquecido e com paisagens arruinadas? Intentando se desvencilhar das narrativas negacionistas e da governança tecnocrática e mercadológica da crise, os escritos do dossiê buscam dar algumas respostas ou, pelo menos, provocações e inspirações críticas para multiplicar nossas possibilidades de prever e fazer mundos alternativos.

O Dossiê é composto por escritos que comungam da emergência e da urgência de contar histórias quentes para além da análise fria dos números e do design gerencial e tecnoburocrático dos efeitos do aquecimento global, apontando para perspectivas outras, que ultrapassem a estatística da catástrofe, trazendo a tona sua faceta existencial, corpórea, afetiva, associativa, transformativa, cosmopolítica, metafísica e seus contornos racistas e sexistas. Seguindo a proposição de Bruno Latour, buscamos criar um espaço para se compor um mundo comum mediante as humanidades, as artes e à política de dentro e a partir da incontornavelmente imersão na tarefa de lidar com a “monumental tragédia climática”. A emergência climática seria, segundo Joseph Stiglitz, nossa terceira guerra mundial. Nomeando um tempo de transformação do planeta pela ação humana que não pode mais ser minimizada como uma simples “mudança” natural do clima pelo aquecimento global ou negada como fazem os negacionistas climáticos, mas tratada como uma emergência, como crise e como iminência do colapso, um fato incontornável do que vem sendo chamado de antropoceno, capitaloceno ou o tempo das catástrofes.

Desde a conquista das Américas e circum-navegação global, os complexos agroindustriais e as práticas de devastação das florestas tropicais e temperadas vem conformando toda uma complexa cadeia de produção, circulação e consumo de mercadorias dependentes de combustíveis fósseis e responsáveis pela emissão de carbono na atmosfera a um ritmo cada vez mais acelerado, criando infraestruturas antropocênicas que se materializam em paisagens arruinadas e no clima mais quente. Com a Grande Aceleração do período pós-segunda guerra mundial a taxa de emissão de carbono na atmosfera se tornou cem vezes maior do que qualquer outro ponto da história humana pré-revolução industrial, engendrando o aquecimento crescente do planeta.

Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) — o coletivo de cientistas engajados em compreender o clima e orientar políticas globais — o razoável seria mantermos a concentração de carbono à menos de 400 partes por milhão e a temperatura entre 1, 5 a 2 graus célsius, para que tenhamos condições de seguir vivendo num planeta minimamente habitável. Números não expressam o calor dos acontecimentos: independentemente da hipótese que nós vamos presenciar, o aquecimento global já ocupa nossos corpos, espaços e imaginário, com cenas de degelo do ártico, aumento do nível dos oceanos, morte dos corais e mega extinção de espécies, aumento da incidência de fenômenos extremos como tornados e incêndios, seca e savanização de florestas tropicais como a amazônica e a caatinga, circulação de milhões de refugiados climáticos e cada vez mais a contaminação de nossos corpos pelas pandemias contemporâneas, como a COVID-19.

No entanto algumas crises são sempre passageiras, assim como as crises econômicas ou políticas, mas as mutações climáticas nos ensinam uma verdade inconveniente: ela não vai passar. Uma transformação ecológica é duradoura, irreversível e vai nos dar muita dor de cabeça. Mesmo que tenhamos que afirmar esta verdade consensual por diversos regimes de conhecimentos, das ciências climáticas aos conhecimentos tradicionais, e mantê-la em nosso radar, muitos a negam em falsos debates enquanto outros ofertam alternativas infernais, autoproclamam-se gestores dos “tempos difíceis” e se empenham numa narrativa da crise como modo de governo em uma aposta na insegurança existencial crônica, criando mundos onde novas formas de gestão da população, nem sempre democráticas e quase nunca justas, são postas em prática. Vejamos como forças do mercado e de governos da extrema direita se valem da crise para apostar suas fichas em narrativas negacionistas, na xenofobia contra refugiados climáticos e de guerras, em projetos de exclusão e de mais controle securitários e autoritários, ou numa vertente neoliberal, com projeções de saídas via mercado, mantendo desigualdades, e pela aplicação arriscada de geoengenharia à escala global.

Ao mesmo tempo, as esferas ditas civilizatória como o IPCC e as Convenções das Nações Unidas não estão sendo eficazes para convencer governos e pessoas a agirem frente a um, cada vez mais inegável, regime climático global crítico. Acadêmicos das humanidades penam em mostrar que a mutação climática se realiza de forma diferente e desigual em cada parte do planeta e as esquerdas não estão sendo eficientes em promover e alavancar uma alternativa ecossocialista como saída para a crise. Para além dos sonhos autoritários e dos novos lucros de uma “economia de baixo carbono”, a linguagem hermética e tecnocrática dos cientistas e os acordos nunca cumpridos e quase sempre sabotados pelos governos de ocasião, como o Acordo de Paris, dificultam o agir coletivo para, como sabiamente escreveu Ailton Krenak, “adiar o fim do mundo” ou como nos ensina o xamã David Kopenawa Yanomami, impedirmos a “Queda do Céu”. Os “nossos responsáveis” parecem jogar dados viciados com nosso futuro. Irresponsabilidade é o nome do jogo que os de sempre sempre ganham. A incerteza é se o dado continuará sendo jogado e por quem.

*Texto publicado originalmente em https://www.coletiva.org/dossie-emergencia-climatica-n27-editorial-com-thiago-mota-cardoso

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