Vidas no limite: territórios indígenas na Amazônia

Antropo.Cenas
5 min readAug 1, 2019
Povos Indígena Munduruku em protesto em frente ao Ministério da Justiça, Brasilia, 2017 (Fonte: Thiago Cardoso)

por Thiago Cardoso

“Os territórios indígenas não são áreas improdutivas, mas são aquelas que garantem que tenhamos chuva, vento e preservação do meio ambiente”. Esta frase, postada via Twitter por Sônia Guajajara, uma grande liderança indígena no Brasil, representa a visão que os povos indígenas tem de seus territórios. Para além da produção e do mercado, são lugares para a promoção da vida humana e não humana, e devem ser protegidos.

Sônia nos ajuda a compreender o fundamento básico de um território indígena. Entretanto, muitas pessoas não são familiarizadas com os caminhos nos quais tais territórios são reconhecidos e mantidos nos atuais sistemas de direitos dos países latino americanos, menos ainda sobre a importância destas áreas para a conservação ambiental e climática em biomas como o amazônico e, muito menos sobre os desafios que encontram os diversos povos diante das ameaças à seus modos de vida em seus territórios.

Cada território indígena se constrói de acordo com o modo de vida de cada povo e, em geral,eles se baseiam nas relações de parentesco, nos movimentos das pessoas, nas construções dos saberes cosmográficos e nas diferentes relações com o ambiente para constituir sua territorialidade e saberes sobre a terra. Um exemplo seria o modo de territorialização Yanomami, baseado na articulação entre movimentos intensos e expansivos entre lugares novos e antigos: um território em rede1.

Os povos indígenas lutam para fazer com que os Estados reconheçam seus direitos e demarquem seus territórios tradicionais de acordo com suas particularidades socioculturais e ambientais, sem que tais territórios sejam reduzidos à lógica da propriedade, de um saber quantitativo sobre o mundo e do produtivismo capitalista. A articulação entre as singulares formas de territorialização com os modelos de demarcação de terras previstos nas Constituições pluriculturais dos países latino americanos é, hoje, sem sombra de dúvida, o grande desafio dos movimentos indígenas contemporâneos. O que está em jogo é a recuperação das condições de sobrevivência da multiplicidade dos povos e a regeneração da vida na terra após a tomada e privatização de seus lugares vitais durante a colonização portuguesa e espanhola, com agravamento perante novas formas de agronegócio e neoextravismo.

Direitos ao território são os direitos coletivos dos povos indígenas à terra. A terra e os direitos culturais e ambientais são de importância fundamental para os povos indígenas por uma série de razões, incluindo: o significado cosmológico da terra, a autodeterminação, a identidade e os fatores econômicos. Segundo a RAISG (Amazon Geo-Referenced Socio-Environmental Information Network) os territórios indígenas ocupam mais de 45% do Bioma Amazônico e representam a área mais preservada em países como Brasil, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, Bolivia, Suriname e Guyanas, onde vivem 1,5 milhão de indígenas de 385 povos diferentes nas cidades e em terras demarcadas.

No Brasil, um território indígena ou terra indígena é uma área habitada e exclusivamente possuída por povos indigeI just publishednas. A Constituição brasileira reconhece os direitos inalienáveis dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam e automaticamente lhes confere a posse permanente dessas terras. Em 2016, havia 672 Terras Indígenas no Brasil, cobrindo 13% da área do país. A vasta maioria das Terras Indígenas estão concentradas na Amazônia, o que corresponde a mais de 20% da área da Amazônia brasileira.

Em outros países como o Peru, que possui uma das população indígena mais numerosa da América Latina e Caribe. Os indígenas estão organizados em 1509 Comunidades Nativas, cujas terras em conjunto representam uma superfície de 14% de la Región Amazónica Peruana. Ao mesmo tempo, existe 5 Reservas Territoriais para Povos Indígenas em Isolamento Voluntario e a figura das Reservas Comunais para populações locais indígenas ou não indígenas, que formam parte del Sistema Nacional de Áreas Naturais Protegidas pelo Estado (SINANPE). Na Colombia, 31,5 % do país se encontra titulado como territórios (Resguardos) dos 87 povos indígenas que habitam os Andes ou nas Savanas e Florestas Amazônicas. Na Amazônia existem 156 Resguardos que conformam 64% do total de las terras da Amazônia Colombiana. Já no Equador, os povos indígenas demandam como territórios próprios una superfície de 6.308.000 hectares, que equivale al 25 % del território nacional e 64 % da Amazônia Equatoriana, sendo tituladas a metade deste tamanho como áreas protegidas. Todos os outros países sul americanos possuem seus modelos próprios de reconhecimento e demarcação de terras para os povos indígenas, seguindo legislações nacionais e acordos globais.

O histórico de demarcação destes territórios conforma um mosaico de áreas protegidas na Amazônia, fundamental para a biodiversidade e para a sociodiversidade global. Mesmo após as demarcações, os territórios são frequentemente ameaçados por empresas nacionais e transnacionais que conectaram a região ao capitalismo global, tornando a Amazônia produtora de matérias-primas e alimentos. O desmatamento, a degradação e a perda de carbono ameaçam os territórios dos diversos povos indígenas, extrativistas e ribeirinhos, bem como espécies de animais e vegetais de todos os tamanhos e beleza. Além disso, acentua a crise climáticas que afeta todo o planeta.

Os povos indígenas convivem e lutam em diversas arenas locais, nacionais e internacionais contra a implantação de infra-estruturas em seus territórios, como na defesa Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS) frente a construção de rodovias e exploração de recursos madeireiros na Bolivia. No Brasil, Munduruku, Juruna e Kayapó lutam contra mega-hidrelétricas em seus rios. Outra frente de luta se dá na “guerra pelo petróleo” que mobilizam indígenas da província de Pastaza no Equador e ameaça diversos povos “isolados” situados na “Zona Intangível” do Parque Nacional Yasuní, um dos locais mais biodiversos do mundo. Também no Equador, os Shuar buscam recuperar e proteger seu território contra mineradoras chinesas protegidas por militares. A mineração ilegal também é epidêmica na Amazônia brasileira, afetando diversos povos, como os Yanomami, vitimas da “corrida ao ouro”, que conta com apoio de políticos locais.

Como escrevi em outros textos, neste jornal, podemos considerar os territórios indígenas como áreas protegidas, pois protegem os povos indígenas, seus ambientes e lugares sagrados e, ao mesmo tempo, protegem o nosso planeta da insaciável predação extrativista e contaminante de empresas e governos. É nos territórios indígenas amazônicos que encontramos a maior parte da biodiversidade, da agrobiodiversidade, de água de qualidade e de florestas pulsantes, constantemente produzidas, reproduzidas e cuidadas com parcimoniosidade.

Devemos escutar as vozes de lideranças e pensadores dos povos indígenas, como Sônia Guajajara, quando estes falam que seus territórios são áreas protegidas, que são vivos e para a vida. Tais falas nos apontam caminhos para outros modos de existência, para mundos alternativos ao da hecatombe de um tempo em que catástrofes, genocídio e paisagens devastadas são consideradas um mal necessário para produção de riqueza — com um detalhe — para poucos.

1Albert, Bruce, and François-Michel Le Tourneau. “Ethnogeography and resource use among the Yanomami: Toward a model of “reticular space”.” Current anthropology 48.4 (2007): 584–592.

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